Momento delicado da economia expõe uma triste realidade: processo atende muito mais as necessidades de certificação e não a qualidade real das edificações
O processo de comissionamento tem por objetivo garantir que todos os sistemas e equipamentos de uma edificação operem de acordo com o que foi especificado e requisitado no projeto, obedecendo às determinações do proprietário. Assim sendo, o comissionamento deve ser introduzido desde as fases iniciais da obra, até sua partida, incluindo testes, ajustes e treinamento do pessoal de operação.
“O conceito de comissionamento está muito mais abrangente e absorvendo várias ferramentas de apoio, desta forma consegue estender essa abrangência desde a fase de concepção de um projeto até sua operação. Estas ferramentas podem ser desde simuladores de consumo de energia na fase de concepção, até modernos softwares de operação de edifícios ou gerenciadores de demanda de energia”, esclarece o engenheiro Marcos Antônio Vargas Pereira, diretor técnico comercial da Térmica Brasil.
Ainda que formalmente tenha sua importância reconhecida, no Brasil a prática ainda é pouco implementada. Há uma enorme resistência de empreendedores, construtoras e instaladoras na hora de incorporar o comissionamento. “Independente de novidades, a atividade de comissionamento no Brasil ainda é pouco conhecida e valorizada. Acredito que o mercado ainda não tenha percebido os seus benefícios, ou pior, nos deparamos com muitos clientes que não veem os benefícios deste serviço. Devido à falta de informações o mercado se restringe a testes de recebimento de obra e verificação de operação. Em geral, os clientes só buscam profissionais de comissionamento quando os problemas são muito grandes; mas é nesse momento que a maioria das soluções tem um custo muito alto. Há ainda muita confusão em relação ao papel do comissionamento; é por isso que o DN BCA – Departamento Nacional de Building Commissioning Association Brasil da Abrava está promovendo diversos seminários educativos para esclarecer quais as possibilidades de uso do comissionamento”, comenta Marcos Torres Boragini, da Torres Commissioning Engenharia.
Para Leonilton Tomaz Cleto, diretor da Yawatz Engenharia, devido à crise houve uma diminuição significativa dos edifícios que buscam uma certificação; consequentemente, uma queda muito grande no fornecimento de serviços para o comissionamento. “Nos poucos projetos atuais que o comissionamento ainda é requerido, qualquer novidade que resulte em aumento de escopo e, por consequência, no custo dos serviços, não será bem-vinda. Isto é triste, pois demonstra que o comissionamento no Brasil ainda não é reconhecido como um processo associado à qualidade e ao desempenho dos sistemas prediais, ou seja, como um item fundamental para o projeto, construção e operação de um edifício. É considerado, ainda, apenas mais um item requerido pelo LEED ou como um dos seus créditos para aumentar a pontuação”.
O diretor da Yawatz comenta que o comissionamento está bem estabelecido a partir das diretrizes do Ashrae Guideline 0, de 2013. Em relação às novidades, Tomaz cita a inclusão (no Guideline 0) do processo de comissionamento da envoltória, o NIBS (National Institute of Building Sciences) Guideline 3, que trata do processo de comissionamento da envoltória. Ele foi publicado inicialmente em 2006, mas somente a partir da versão 4 do LEED, em 2015, quando o comissionamento da envoltória foi incluído como uma das opções de crédito (2 pontos) referentes ao Enhanced Commissioning (Comissionamento Intensificado), é que o comissionamento da envoltória passou a ser considerado importante nesses processos nos EUA. A versão atual é a NIBS Guideline 3-2012 Building Enclosure Commissioning Process“.
Tomaz ressalta, também, a inclusão no LEED 4 do Monitoring-Based Commissioning, o comissionamento que utiliza o sistema de monitoração de dados como base para a verificação do desempenho dos sistemas e ferramentas de suporte ao processo de comissionamento, a partir da fase de operação dos sistemas. “Esse processo já existe há muito tempo, e, mesmo no Brasil, nos processos de comissionamento anteriores ao LEED, já era aplicado por algumas empresas. Com o advento do LEED, principalmente no Brasil, o escopo do comissionamento foi simplificado em muito, e esta atividade foi extinta. Agora volta como um crédito”.
Novas práticas e tecnologias
Wili Colloza Hoffmann, diretor da Anthares Soluções em HVAC, destaca a aplicação de novas tecnologias, como a IoT e IIoT, – internet das coisas e internet industrial das coisas – que proporcionam, de forma cada vez mais fácil, a disponibilização de informações que possibilitam a manutenção das condições de uma instalação sob controle independentemente da posição geográfica do profissional envolvido.
As novidades em relação ao sistema de comissionamento têm encontrado respaldo no Brasil, acredita Luiz Fonseca, da Honeywell. “Essas novas práticas têm surgido cada vez mais em nosso mercado, acompanhando o movimento mundial. O que ocorre na maioria das vezes é, ainda, a falta de conscientização, seja por parte do instalador ou do próprio cliente que não busca a assessoria de um consultor que possa explicar sobre a importância do comissionamento. É exatamente por isso que os instaladores desempenham um papel fundamental na obra, pois isso terá influência direta no resultado e, consequentemente, na eficiência e economia gerada ao usuário final. Outros fatores determinantes para a não realização do comissionamento são: sua complexidade, a exigência de profissionais capacitados, e o tempo necessário para sua realização de forma eficaz. Dependendo do porte do empreendimento e o dinamismo dos fluxos termodinâmicos de água e ar, podem ser requeridas várias semanas de trabalho, chegando há meses”.
No geral, há uma percepção de que não houve avanços em relação à aplicação do conceito de comissionamento, ou que o avanço é muito lento. “Não percebemos mudanças nos processos de comissionamento. Em geral, nós, como fabricantes de bombas, somos consultados somente quando algo de anormal ocorre e que compromete a operação”, comenta Roney Tadeu da Silva, supervisor de vendas para a construção civil da Grundfos Brasil.
“Acho que não houve nenhum avanço nos últimos sete ou 10 anos. O que houve de 2008 a 2014 foi um crescimento do mercado de comissionamento por causa dos edifícios que buscavam a certificação. Já a partir de 2015 houve uma redução drástica”, explica Tomaz.
Segundo o engenheiro Vargas, da Térmica Brasil, deveria existir um banco de dados que permitisse divulgar números/estatísticas ao mercado, não deixando a cargo da percepção individual de cada empresa. “Tivemos avanços com clientes que num primeiro momento nos contrataram em função da exigência da certificação LEED e, agora, usam o comissionamento em obras que não buscam certificação. Acredito ser um passo importante”.
Conscientização e divulgação
A conscientização e a divulgação são fatores primordiais para que a prática do comissionamento seja conhecida, aprofundada e disseminada. É preciso apresentar ao cliente final que esta prática gera e proporciona economia no processo. Palestras e cursos com estudos e relatos de casos aumentariam e fomentariam o mercado.
“Enquanto o cliente final não se der conta da importância do processo de comissionamento para o seu empreendimento, esta atividade terá um papel marginal. Não havendo exigência, qualquer um pode se candidatar a fazer o processo. Mas para que essa prática traga algum impacto real são necessários profissionais conceituados, capacitados e com experiência em projetos e funcionamento dos sistemas. Treinamento é importante, mas certificação e ‘carteirinha’ não são credenciais para profissionais sem conhecimento e experiência”, explica Tomaz.
Para Fonseca, a conscientização dos envolvidos no projeto é fundamental para o aprofundamento da prática. “Muitas pessoas acreditam que o comissionamento é apenas uma etapa morosa e burocrática, sem mencionar uma atividade de retrabalho. O comissionamento deveria ser interpretado como uma ferramenta de garantia, através dela haverá certeza de que a entrega está de acordo com o que foi solicitado e planejado”. Em sua opinião o correto seria o cliente contratar o comissionamento de forma independente. Neste caso, o consultor ou a empresa seriam neutros a respeito do serviço executado, podendo apontar as melhorias necessárias para que o sistema consiga atingir a máxima eficiência energética. “A contratação dessa atividade especializada e de forma independente é algo que deve ser avaliado e colocado dentro do plano de manutenção e engenharia do cliente”, argumenta.
Profissionais não preparados contribuem para gerar uma percepção negativa da prática, constituindo-se em problema a ser combatido, comenta Vargas. “Recomendo que os clientes busquem informações antes da contratação de profissionais. Uma boa forma é criando um escopo de trabalho sólido e que atenda suas necessidades. E, através desse escopo, contratar profissionais experientes para execução do processo”.
Uma necessidade nas instalações de ar condicionado
O comissionamento assegura que o sistema de ar condicionado e seus componentes foram instalados corretamente. Se ele for executado desde a sua concepção, estabelecendo os vários cenários possíveis e soluções de projeto, municiará o contratante com informações para a tomada de decisões sobre qual sistema é o mais adequado e viável, balizará a contratação do instalador mais capacitado, verificando durante a instalação a qualidade de execução, e garantirá um processo adequado de treinamento e documentação para operação e manutenção. Com todos esses cuidados certamente haverá uma instalação que irá funcionar de forma a atender a todas as expectativas do contratante.
As instalações de climatização se utilizam de processos termodinâmicos e de fluxos de energia, o que exige certa complexidade. A interação que ocorre em cada processo termodinâmico pode interferir tanto no conforto dos ocupantes ou processo produtivo, como também pode implicar em consumo desnecessário de energia para mantê-lo sob controle. É muito importante que todo o sistema, composto por válvulas, atuadores e dampers, seja minuciosamente comissionado, testado, ajustado e balanceado.
“O processo de comissionamento visa obter instalações que ocorram de forma harmoniosa, proporcionando ao mesmo tempo o resultado esperado com a utilização da menor quantidade de energia possível, o que vem associado ao custo operacional, sem falar na questão da segurança operacional em caso de incêndio, por exemplo. A aplicação do comissionamento em outras disciplinas é igualmente importante, ainda que com um menor grau de complexidade”, diz Hoffmann.
Fonseca cita a automação como fundamental no balanceamento de sistemas de distribuição de ar, mas explica que ela, por si só, não é capaz de ajustar o balanceamento, sendo necessário o ajuste físico e mecânico dos equipamentos. “A automação tem fator fundamental no balanceamento de sistemas de distribuição de ar, uma vez que a mesma atua de forma dinâmica no controle de atuadores de dampers e faz a checagem contínua através de sensores, se o sistema permanece balanceado. Assim, como no sistema de distribuição de ar, a automação atua desde a geração da água gelada nos chillers, tanques, bombeamento, medição e controle do fluxo de vazão de água”.
Silva, da Grundfos, comenta que é muito comum encontrar equipamentos instalados de maneira inadequada em Centrais de Água Gelada, prejudicando o seu funcionamento ou reduzindo a vida do produto. Sem contar instalações que operam diferente da forma como foram projetadas, como, por exemplo, os sistemas com variadores de frequência trabalhando em velocidade fixa.
Fornecedores de equipamentos e componentes
Muitos fornecedores já estão incorporando as atividades de comissionamento em seus equipamentos, podendo, assim, fornecer um bom suporte ao processo nas suas várias etapas. Tomaz cita algumas dessas atividades: as folhas de selecionamento dos equipamentos com dados detalhados para a análise de projeto, procedimento de startup e para testes em campo; relatórios de testes em fábrica; dados disponibilizados nos painéis de controle transmitidos para o BMS – Building Management System, gerando curvas de tendência e posterior análise; ferramentas de avaliação de desempenho e instrumentação de campo e suporte de engenharia de campo; e suporte de engenharia de campo durante o período de TAB – Teste, Ajuste e Balanceamento dos sistemas, após o startup dos equipamentos. Mas enfatiza que muitos técnicos representantes dos fornecedores, ainda desconhecem as características de desempenho dos equipamentos e as condições de operação de projeto do equipamento instalado naquele sistema específico.
“Hoje, algumas empresas já desenvolvem produtos com investimento em engenharia e tecnologia, facilitando o processo de comissionamento. Não é um trabalho muito fácil e, muitas vezes, nem sempre é possível contribuir diretamente. A qualidade do sistema de automação (não apenas do comissionamento), por exemplo, é um fator crítico para manter o balanceamento da distribuição de água altamente confiável e eficiente. Um sistema de controle com hardwares de alta performance, aliado ao desenvolvimento de algoritmos específicos por integradores devidamente qualificados e treinados, podem operar válvulas de controle capazes de promover um rendimento de alto desempenho nos sistemas de AVAC”, afirma Fonseca.
“É imprescindível que o fornecedor garanta a performance dos seus produtos através de equipamentos de medição calibrados e reconhecidos nacionalmente e internacionalmente”, alerta Hernani Paiva, diretor geral da América do Sul e Central da IMI Hydronic Engineering.
Para Hoffmann, uma das dificuldades que o agente comissionador e sua equipe de campo possuem é o acesso ao valor das grandezas físicas (comprimento, pressão, temperatura, massa etc.). As grandezas podem ser medidas e utilizadas para entender e controlar os processos de transformação para a interpretação do desempenho das instalações. O fornecedor de equipamento deve estar atento para a inclusão destas novas tecnologias e ferramentas em seus produtos.
Charles Godini
charles@nteditorial.com.br
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