Os Estados Partes do Protocolo de Montreal decidiram em sua 28ª reunião, ocorrida em Kigali, Ruanda, em outubro de 2016, pela inclusão dos hidrofluorcarbonos (HFCs) na lista de substâncias controladas pelo organismo multilateral. Ainda que não causem danos à camada de ozônio, tais substâncias, desenvolvidas em alternativa aos CFCs e HCFCs, contribuem significativamente para o aquecimento global. Sua substituição levará a uma maior eficiência energética de sistemas e equipamentos de AVAC-R.
A Emenda de Kigali, como ficou conhecida, entrou em vigor no dia 1º. de janeiro de 2019. Caso receba o merecido apoio de governos, setor privado e sociedade em geral, poderá evitar um aumento de até 0,4°C na temperatura média global no século atual. “O Brasil, embora signatário da Emenda de Kigali, ainda não ratificou o acordo. O processo continua aguardando ser colocado em pauta para votação. Trata-se do Projeto de Decreto Legislativo 1100/2018, em regime de urgência, que já tramitou na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e, no momento, está pronto para pauta no plenário. Com o retorno dos trabalhos no legislativo, acreditamos que logo seja votada”, explica Eduardo Almeida, diretor de tecnologia da Bitzer e presidente do DN Refrigeração Comercial da Abrava.
O Brasil, enquanto pertencente ao Grupo 1 dos países A5, deverá congelar o consumo dos HFCs em 2024, iniciando sua redução a partir de 2029. “Nesse horizonte, o setor de refrigeração e ar-condicionado deve começar a avaliar alternativas disponíveis pensando em uma transição a médio e longo prazo. No curto prazo, os HFCs ainda serão a solução mais prática e disponível. Do ponto de vista de sustentabilidade, as soluções com mesclas de HFCs e HFOs serão as melhores alternativas, pois permitirão uma transição eficiente, segura e econômica. Muitas tecnologias alternativas de baixíssimo GWP (Potencial de Aquecimento Global) ainda estão se consolidando nos países desenvolvidos e não há uma solução única e unânime que possa atender todas as aplicações do setor”, explica Joana Canozzi, líder de desenvolvimento de negócios e suporte técnico da área de fluorquímicos da Chemours.
Carlos Obella e Danilo Gualbino, da Emerson, chamam atenção para os impactos da Emenda: 1) ambiental total, com redução de emissões diretas e indiretas; 2) tecnológico, na implementação de novas tecnologias que são seguras, eficientes e confiáveis para o uso de refrigerantes alternativos, naturais e sintéticos; 3) na eficiência energética, muito importante na otimização dos custos operacionais do equipamento que aplicará refrigerantes com menor impacto ambiental; e, 4) econômico, não apenas no custo do fluido refrigerante, mas também no custo do desenvolvimento tecnológico necessário à sua implementação, além do custo inicial, operação de manutenção e disposição dos equipamentos que os aplicam.
“O Brasil necessita direcionar as normas locais com base nas normas internacionais já aplicadas atualmente. Os regulamentos obrigatórios existentes interferem na aplicação de fluidos refrigerantes com alto impacto ambiental, principalmente na Europa, e farão com que fabricantes e usuários finais globais transfiram as mesmas tendências tecnológicas para países como o Brasil, onde esses mesmos regulamentos ainda estão no estágio de desenvolvimento e amadurecimento”, opina Obella.
Canozzi acredita que o efeito mais imediato no mercado brasileiro seja quanto à disponibilidade de produtos HFCs a partir do congelamento do consumo em 2024. “Além do Brasil, outros países signatários seguiram cronogramas similares e a disponibilidade de produto passa a ter um controle maior, tanto para os países produtores como os consumidores. Naturalmente, a relação entre oferta e demanda será bastante dinâmica, assim como ocorreu com outros produtos, como CFC e HCFC.”
“A curto prazo não deverá haver grandes impactos, pois o consumo entre 2020 e 2022 servirá de base para estabelecer a média de consumo que será congelada a partir de 2024, sendo que a primeira redução de 10%, somente ocorrerá em 2029. Acredito que o processo será bastante semelhante ao dos HCFCs (R22), sendo que este já se encontra um processo de phase-out, ou seja, eliminação do seu uso. As economias emergentes ainda vão garantir o abastecimento do HFCs por um longo período”, acredita o presidente do DN Refrigeração Comercial.
De qualquer forma, os fabricantes de equipamentos e sistemas não estão parados. “Gradualmente, os fabricantes de equipamentos de refrigeração comercial começam a prestar mais atenção ao problema, desenvolvendo equipamentos que utilizam menor carga de fluido refrigerante, menos vazamentos e menor impacto ambiental”, entende Gualbino.
Particularmente empresas que exportam produtos e tecnologias para países desenvolvidos já sentem a cobrança de soluções de menor GWP. “A indústria automobilística, ao exportar para a União Europeia, por exemplo, já requer o uso do fluido refrigerante HFO 1234yf no sistema de ar-condicionado, sendo o uso do R-134a não mais permitido. Além disso, vemos crescer a consciência das pessoas e empresas em busca de tecnologias mais sustentáveis em longo prazo e que promovam a eficiência energética ou ganhos de produtividade. A decisão de Kigali colocou o mercado de refrigeração em foco para as questões da mudança climática e vem impulsionando o debate e a discussão sobre o tema, contribuindo para a busca de soluções mais sustentáveis a curto e longo prazo”, enfatiza a representante da Chemours.
Ainda que a ratificação do compromisso esteja paralisada no Congresso, órgãos governamentais com maior orientação técnica já iniciou o debate com a sociedade através de associações empresariais e profissionais envolvidas. “A experiência adquirida com outras mudanças de tecnologias do passado certamente ajudará nesse novo processo de mudanças. O importante é que todos os setores possam ser ouvidos, incluindo fabricantes de sistemas, usuários, técnicos e engenheiros, e as diferentes tecnologias e soluções alternativas possam ser apresentadas de forma aberta, demonstrando vantagens e desvantagens. Ainda vemos que o debate muitas vezes se limita somente a alguns setores, perspectivas ou propostas que nem sempre cobrem toda a necessidade do mercado”, continua Canozzi.
Neste sentido, Almeida chama a atenção para “alguns movimentos no sentido de soluções alternativas que já se fazem presente em algumas redes de supermercados, associando novas tecnologias com fluídos naturais ou com baixo GWP e equipamentos de alta eficiência energética”.
Alternativos aos HFCs
Ainda que a substituição dos HFCs não esteja num horizonte imediato, as discussões no ambiente técnico buscam por alternativas. “Entendemos as características do mercado brasileiro de refrigeração e vemos boas perspectivas para alternativas baseadas em mesclas de HFOs. Atualmente, tanto para retrofit de sistemas já em operação quanto para novos projetos, a tecnologia que melhor se adapta é o R-449A, que substitui tanto o R-404A quanto o R-22, sem necessidade de grandes alterações nos sistemas. Além de promover a redução do GWP de 67% e 27% respectivamente, essa tecnologia também pode contribuir para a eficiência energética do sistema, reduzindo o consumo de energia em até 12% de modo simples, preservando as características e capacidades do sistema. Casos de sucesso de retrofits ou implementação em novos projetos, realizados em parceria com grandes redes de supermercados como St. Marché, ABC, Centerbox, Jaú Serve e empresas que oferecem a tecnologia como a Superfrio, já disponíveis e comprovando o desempenho do produto”, diz Joana Canozzi.
Por outro lado, Obella, da Emerson, diz que pouco a pouco o número de supermercados que aplicam o R744 está aumentando, “tanto em regime subcrítico quanto transcrítico”. E, ainda segundo o executivo, “algumas experiências recentes com o R290 apareceram. As misturas de HFO ainda se mostram muito caras e sua disponibilidade é baixa. Ainda não há um grande avanço no ar-condicionado, onde a evolução do R22 para o R410A continua.”
“Embora ainda não exista um cenário claro neste momento, os fluídos naturais como o CO2, amônia e os hidrocarbonetos são os que estão sendo mais procurados para os novos projetos seguidos dos refrigerantes sintéticos com baixo GWP. Os HFOs podem ser usados como fluídos para o retrofit de instalações já existente que operam com os HFCs, com pequenos ajustes e substituição de alguns componentes. Lembramos que não se trata de um refrigerante do tipo drop-in, ou seja, cada instalação deverá ser analisada com critério para a execução desta mudança. Também temos que levar um conta que os HFOs possuem um grau importante de flamabilidade”, argumenta Almeida.
Enquanto representante de uma das maiores fabricantes de fluidos refrigerantes, Canozzi contrapõe “alternativas que são simples, seguras e não inflamáveis para o retrofit direto, as quais requerem adaptações muito pequenas nos sistemas e preservam o uso dos mesmos equipamentos como compressor e condensador, além de exigirem rotinas de manutenção simples, muito parecidas às rotinas já praticadas com o uso do HFCs. Dentre as vantagens oferecidas pela adoção dos HFOs, estão a redução do impacto ambiental, o prolongamento da vida útil dos equipamentos já instalados, a possibilidade de redução do consumo de energia dos sistemas promovendo a eficiência energética, ou até mesmo ganhos de produtividade dos sistemas.”
Em relação ao CO2, os representantes da Emerson argumentam que constitui uma solução definitiva do ponto de vista ambiental. Em contrapartida, tem suas limitações, como o custo inicial, “dado o desafio de tornar os sistemas que usam o R744 eficientes em ambientes quentes. O nível técnico da equipe de operação e serviço também é desafiador.”
“A principal vantagem do CO2, sendo um fluído natural encontrado na atmosfera, é ter o GWP=1, sendo referência para outros refrigerantes. Sua eficiência em baixa temperatura é bastante alta. Embora sua restrição de uso seja pequena, estes sistemas sempre estão associados a uma elevada pressão de operação. Não existe a possibilidade de retrofit, e o sistema deverá ser projetado especificamente para o refrigerante CO2”, explica o presidente do DN Refrigeração Comercial.
Almeida também comenta sobre os hidrocarbonetos em substituição aos sintéticos. “São fluídos de pressões bastantes similares aos HCFCs e HFCs, porém, devido a sua alta flamabilidade, sistemas de segurança específicos deverão ser previstos além da limitação de 150g por circuito (revisão para 500g/circuito está sob análise). Os compressores são específicos para este fluído; o óleo também difere dos utilizados nos compressores com HCFCs e HFCs, mas as tubulações e trocadores são semelhantes, bem como as válvulas e controles”
“É importante pontuar que Kigali visa reduzir o GWP gradativamente em diferentes patamares de acordo com o tipo de aplicação, considerando as alternativas disponíveis no mercado para consolidação da transição, diferente do Protocolo de Montreal, que vem realizando a eliminação de substâncias que degradam a camada de ozônio. Por isso, no caso de Kigali a tendência é de que, para diferentes aplicações, sejam adotados diferentes níveis mínimos de GWP permitidos”, pontua a técnica da Chemours.
“Outro ponto que vem ganhando relevância na discussão da eficiência e impacto ambiental de sistemas é o conceito de TEWI (Total Equivalent Warming Impact) para medida de emissões. O GWP é uma medida que contabiliza somente o impacto ambiental da emissão direta do fluido refrigerante na atmosfera. Entretanto, o funcionamento dos sistemas de refrigeração e climatização também envolve outros tipos de emissões indiretas, relacionadas, por exemplo, ao consumo de energia do equipamento. A proposta da medida de TEWI visa contabilizar o somatório de emissões diretas e emissões indiretas dos sistemas em discussão, medida que garante uma análise mais ampla e integrada da questão ambiental e econômica, pois considera também o viés da eficiência energética do sistema tratado no Brasil pelos Ministérios de Minas e Energia por meio do selo Procel”, conclui Joana Canozzi.
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