Os cuidados com a qualidade do ar interno, marcantes no início dos casos de Covid-19, talvez não sejam os mesmos, entretanto, muita coisa permanece

A pandemia provocada pelo Sars-CoV-2 foi um dos eventos mais impactantes pelo menos nos últimos 50 anos. Outras pandemias, tão letais quanto, foram atenuadas por condições históricas específicas ou pelas características do vírus que as provocavam. A H3N2, a chamada gripe de Hong Kong, por exemplo, registrada pela primeira vez em 1968 demorou a chegar à Europa e quando chegou já não tinha alto grau de letalidade, talvez pelo mundo não estar tão conectado quanto neste início de século. O vírus Ébola, dada sua altíssima letalidade, tampouco conseguiu cruzar as fronteiras da África.

A Covid-19, ao contrário, conseguiu cruzar continentes com espantosa rapidez deixando um rastro de mortes e sequelas. Não fosse o hercúleo esforço pela produção de vacinas, que muitos até hoje tentam negar, os efeitos seriam bem mais funestos. Por outro lado, deixou lições. Por exemplo, sobre a percepção da importância da qualidade do ar interno. Se elas permanecerão, é a incógnita.

Marcelo Munhoz, diretor da Sicflux e presidente do Qualindoor Abrava até o mês passado, aposta na perenidade. “Ela se mantém pois esta não será a última que vivemos, a sociedade de alguma forma está se precavendo mais nesse tema. O mercado enxergou valor no ar que respira, já vemos estabelecimentos mostrando em tempo real a qualidade do ar e propagandas na televisão citando renovação de ar; claro, não é todo o mercado, porém já é um grande avanço vermos certos movimentos positivos. A preocupação em propiciar ambientes mais saudáveis se mantém, estamos vendo por exemplo um movimento do CREA em estar mais próximo de vigilantes sanitários, o que é um grande passo.”

Os diretores da Ecoquest, Henrique Cury e Manoel Gameiro, tampouco desprezam os efeitos do evento. “A pandemia trouxe luz a problemas sérios sobre QAI que vimos discutindo há tempos.  Leigos passaram a entender melhor os riscos a que eles estavam expostos nos ambientes internos, riscos esses que já eram conhecidos dos especialistas do setor”, afirmam eles em entrevista por email.

“A preocupação com a QAI mudou de patamar, contudo, temos que continuar discutindo e levando ao conhecimento das pessoas. Enquanto as pessoas não tiverem acesso às informações em tempo real da QAI dos ambientes onde eles trabalham e frequentam, não alcançaremos a mudança que gostaríamos de ver. O grande problema é que as pessoas não sabem o risco ao qual estão expostas em termos de umidade, PM, voláteis, unidades formadoras de colônias de bactérias, fungos etc.”, alertam eles.

“A preocupação com a qualidade do ar, apesar de forma menos intensa, continua existindo. Aqui na Multivac ainda sentimos uma grande procura por soluções de melhorar a qualidade do ar e atingir os níveis adequados para sua renovação”, diz o diretor da empresa de soluções para renovação e distribuição do ar, Robert van Hoorn.

Há quem acredita que a pandemia forçou muitos profissionais envolvidos na climatização dos ambientes a reverem seus conceitos. “Uma das consequências da pandemia foi evidenciar a importância das questões relacionadas aos cuidados com a qualidade do ar interno em ambientes fechados. Essa temática se tornou um dos maiores desafios, não somente no ambiente empresarial, como em todos os ambientes que são compartilhados por um determinado grupo de pessoas. Para os profissionais e empresas que trabalham nesse mercado, foi necessário repensar e analisar métodos eficazes para seus projetos, garantindo a inovação e qualidade nas suas instalações”, pontua Laura Baldissera, diretora da Projelmec.

Também é otimista a avaliação Leonardo Cozac, diretor da Conforlab e um dos pioneiros na defesa da QAI. “A pandemia trouxe maior visibilidade para as pessoas sobre a importância da qualidade do ar que respiramos em ambientes fechados. Houve aumento nos cuidados e preocupações com filtração, renovação, purificação, tratamento e controle do ar nas empresas e locais de maior circulação de pessoas. Mas ainda há baixas iniciativas em ambientes menores e principalmente nas residências. Percebo que subiu dentro das hierarquias das empresas a preocupação com a QAI. Antes era um tema marginal, hoje tem uma visão mais central das empresas.”

“Atualmente, as empresas estão mais conscientes da importância da qualidade do ar em ambientes internos, adotando algumas medidas que garantem a segurança e saúde desses espaços para seus clientes e funcionários como, por exemplo, em prédios comerciais e hospitais. Outro ponto fundamental foi o aumento da consciência sobre ventilação. Essa circulação precisa ser adequada em ambientes internos, reduzindo o risco de transmissão de doenças infecciosas. Sendo assim, podemos dizer que o nível de preocupação aumentou e é provável que ele continue a crescer nos próximos anos”, confirma Patrice Tosi, diretora das Indústrias Tosi.

Eficiência energética: como conciliar?

Sem dúvida o tema é extremamente complexo. A qualidade do ar, por si, já possui componentes ambientais. A elevação da temperatura nos grandes centros urbanos, assim como a ocorrência de ilhas de calor urbano, obriga ao condicionamento das edificações. Por outro lado, nesses mesmos centros, o ar externo não raro é pior do que o interno. O consumo energético e o uso de recursos naturais impactam diretamente nas condições ambientais, contribuindo para a poluição urbana e para a disseminação de agentes prejudiciais à saúde humana. Diante disso, não sobra muita escolha. Qualidade do ar e redução do consumo energético estão umbilicalmente ligadas.

“Podemos combinar algumas estratégias usando as duas questões. A primeira seria melhorar a ventilação natural, combinando assim a qualidade do ar e a eficiência energética. Quando não conseguimos essa ventilação natural, podemos tentar o uso de ventilação forçada (com sistemas estudados e bem projetados). Podemos também fazer uso de tecnologias atuais como filtros de ar de alta eficiência e os novos sistemas de purificação que existem no mercado. Essas tecnologias ajudam a reduzir o custo da energia, uma vez que os sistemas são mais eficientes e reduzem a necessidade do uso de aparelhos de ar-condicionado”, opina a diretora da Tosi.

Baldissera corrobora e dá algumas saídas: “Eficiência energética é sem dúvidas um fator importante nos projetos de QAI. Desenvolver sistemas de automação que permitam alcançar melhores resultados em ambos os aspectos, sendo a nossa parte melhorar a eficiência já na seleção dos equipamentos, adequando a melhor condição de rendimento na curva característica ou até propor um sistema de transmissão especial onde podemos melhorar a eficiência reduzindo perdas.”

Hoorn, da Multivac, entende que QAI e maiores taxas de renovação de ar de um lado e eficiência energética do outro a princípio são opostos. “Para conseguir uma boa QAI com o mínimo de gasto de energia é preciso fazer uma boa engenharia para conseguir atender todos as demandas de conforto e QAI com o mínimo de gasto energético. No nosso caso, aqui no Brasil, em que o uso é muito mais de ar-condicionado, o caminho é começar por soluções de arquitetura e projeto que resultem numa carga térmica menor, e consequentemente reduzam a necessidade da capacidade a ser instalada. Na renovação de ar usar recursos de engenharia para captar o ar externo no lado sombreado, que é um pouco mais frio, por exemplo. Por último, procurar soluções mais sofisticadas que ajudam a atender melhor a demanda real do momento e evitam o desperdício através de sensores e controles.”

“Penso que os sistemas de monitoramento online, especialmente na medição de CO2, quando interligados ao sistema de renovação de ar, é uma solução eficaz na manutenção da qualidade do ar interno com eficiência energética. O uso de tecnologias de purificação de ar como filtros, lâmpadas UVC e foto catálise podem reduzir também a necessidade de renovação de ar e consequente menor consumo de energia”, recomenda Cozac.

Os diretores da Ecoquest fazem eco: “As tecnologias ativas são as que mais contribuem para o equilíbrio entre consumo energético e qualidade interna do ar. Com a pandemia, a sociedade entendeu que temos que construir prédios sustentáveis e saudáveis. E já entendemos que existe uma relação direta entre aquecimento global e a piora no ar que respiramos em ambientes externos e internos. O grande desafio da humanidade é a descarbonização das edificações, porém com aumento da saúde dos seus ocupantes. Tal desafio exigirá uma abordagem multifacetada tanto da sustentabilidade ambiental quanto da saúde humana e, aí, as tecnologias ativas têm e terão um papel fundamental.”

Cury aponta algumas questões em discussão em países mais avançados: crescimento das certificações de saúde e bem-estar, QAI x eficiência energética, a busca do equilíbrio, pessoas desejando trabalhar em um local saudável (Wellness Building), melhora na QAI, como sinônimo de melhora na função cognitiva, melhora na QAI enquanto aumento de produtividade, e monitoramento online da QAI.

Certificações contribuem para a QAI

Assim como as certificações ambientais contribuíram para a eficiência das edificações, elas também poderão impulsionar ambientes mais saudáveis. “Posso citar o Selo de Qualidade do Ar Interno da Brasindoor, focado na verificação do sistema de climatização, se atende a legislação e boas práticas. Além disso, está em desenvolvimento a ampliação da auditoria para outros setores que influenciam na QAI, como processos de limpeza, produtos químicos, uso de matérias de acabamento, entre outros. Sendo todo o processo auditado por organismo independente. Há também certificações internacionais como Well e Fitwell que, entre outras ações, estabelece a verificação dos cuidados com a qualidade do ar e água internamente”, informa Cozac.

Também Patrice Tosi relaciona algumas certificações que têm impacto na qualidade do ar. Existem diversas certificações que contemplam a qualidade internos nos edifícios. “O Leed é uma certificação de construções sustentáveis que, entre outros pontos, contempla a qualidade interna do ar, estabelecendo requisitos para ventilação e filtragem do ar, além de limites para emissão de compostos orgânicos voláteis e outros poluentes. O Well Building Standard é uma certificação focada no bem-estar humano em ambientes fechados, estabelecendo requisitos para a qualidade do ar, iluminação, acústica, ergonomia, nutrição, atividade física, entre outros fatores. No que diz respeito à qualidade do ar, a certificação estabelece limites para a concentração de COVs e outros poluentes. A Aqua-HQE é uma certificação francesa que contempla diversos aspectos da sustentabilidade em edificações, incluindo a qualidade do ar interno. A certificação estabelece requisitos para a ventilação e filtragem do ar. Por fim, o Breeam, é uma certificação de construções sustentáveis que contempla diversos aspectos da sustentabilidade, incluindo a qualidade do ar em ambientes restritos. Cada certificação estabelece seus critérios específicos, mas todas têm como objetivo garantir ambientes internos saudáveis e confortáveis para as pessoas que os utilizam.”

Tecnologias eficientes

Durante os picos da pandemia da Covid-19 surgiram inúmeras propostas e tecnologias para auxiliar no seu combate. Todas terão sobrevivido?

“Sem dúvida, os filtros de ar são tecnologias bem conhecidas e validadas que colaboram muito na redução de risco de contaminação de patógenos pelo ar. Outras tecnologias, como as lâmpadas UVC, tiveram ampliados seu uso em diversas aplicações para tratamento do ar. Vejo também a tecnologia da foto catálise consolidada como eficaz na redução de microrganismos, odores e alguns gases. Importante que qualquer tecnologia deve ser aplicada de acordo com recomendações do fabricante e que seja validada sua segurança para a saúde humana”, orienta Cozac.

Independentemente de qualquer coisa, fórmulas consagradas continuam válidas. “Nos projetos é adequado prever sistemas de automação, uso de filtros com alto grau de filtragem, sensores de monitoramento e manutenção adequadas; são alguns pontos a serem considerados, mas uma boa seleção considerando um número adequado de renovações de ar interno é fundamental”, finaliza a diretora da Projelmec.

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