As ondas de calor têm promovido o aumento da demanda por sistemas de climatização nas residências no Brasil, sendo que a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) avaliou que a procura por compra de ar-condicionado e ventilador na internetaumentou 59% no mês de novembro de 2023, em relação ao mesmo período de 2022 (Correio Braziliense, 2023).
Com o agravamento dos cenários de aquecimento global, pode-se antecipar que haverá um aumento na compra e instalação de sistemas de climatização em residências e isto deve ser avaliado em relação a 03 aspectos:
- Infraestrutura: quando da instalação do equipamento de climatização, deve-se redimensionar a rede elétrica da residência como da rede elétrica externa pois esta imporá uma sobrecarga no sistema que deve ser avaliada para evitar interrupção do fornecimento e/ou acidentes no sistema elétrico;
- Consumo de energia: o uso de ar-condicionado promoverá aumentos de consumo significativos nas residências e necessitará o redimensionamento da fiação da rede elétrica para permitir que o sistema possa absorver esta nova demanda
- Qualidade do ar interior: usualmente, quando da instalação do sistema de climatização, não é feita instalação do sistema de renovação de ar, o que pode ocasionar diversos problemas de saúde que podem ser agravados caso não seja feita a devida manutenção que inclui a limpeza e/ou troca de filtros.
Neste artigo serão abordados,de forma mais detalhada, os dois últimos aspectos por meio da análise de resultados obtidos de simulações numéricas de residências típicas em algumas cidades do Brasil.
Análise de consumo de energia em residências
Agostinho (2023) analisou o impacto de um sistema tipo split convencional deresfriamento e aquecimento para climatização de residências na cidade de São Paulo para dados climáticos atuais e projeções futuras. Neste trabalho, foi avaliado o consumo de energia em uma residência cujos parâmetros foram obtidos na norma NBR 15575 (ABNT, 2021) tanto do ponto de vista de dimensões (Fig. 01a e b) como também a ocupação (número de pessoas e perfil de ocupação) como a potência e as horas de operação da iluminação e equipamentos.
Com base nos parâmetros mencionados, um modelo da residência foi construído e simulado no ambiente da ferramenta Energy Plus versão 9.0 (US DOE, 2021) e simulado para dados climáticos típicos da cidade de São Paulo e para dados climáticos futuros (2030, 2050 e 2080) elaborados pormeio da ferramenta Weather Shift (DICKINSON; BRANNON, 2016). O sistema de climatização foi definido com um COP de 3,3 e setpoint de resfriamento e aquecimento em 23°C e 21°C, respectivamente. Adotando os dados de consumo de energia total e do sistema de climatização avaliados com os dados climáticos atuais, pode-se observar que o aumento de consumo de energia que ocorre ao longo dos anos é significativo. Verifica-se que, em 2080, o consumo do ar-condicionado atingirá um aumento de 63%, representando um aumento de 20% no consumo anual da residência em relação às condições atuais.
Figura 2. Contribuição percentual (Ar-Condicionado) (em relação ao consumo anual total), Aumento de consumo anual (Ar-Condicionado)(em relação a situação atual) e Aumento de consumo anual (em relação a situação atual).
Agostinho (Agostinho, 2023) analisou o impacto da mudança de setpoint de resfriamento para 26°C, de forma a verificar o potencial de redução de consumo de energia com o aumento do valor de setpoint. Este aumento do setpointpromove reduções de consumo anual do ar-condicionado de 38% (clima atual) a 49% (cenário de aquecimento global de 2080).
Shaiane (2023) e Kanadaet al (2023) desenvolveram estudo de pequenosapartamentos em edifícios residenciaismultifamiliares (até 50 m²), comfachada total ou parcialmente envidraçadaem São Paulo, no qualfoi avaliado o conforto térmico dos usuários e o consumo anual de energia neste tipo de edificação para cenários climáticos atuais e futuros. Neste trabalho, foram desenvolvidas simulações utilizando o programa TAS (ThermalAnalysis Software Environmental)versão 9.5.1. (EDSL, 2024) nas quais foram avaliadas, inicialmente, as condições de conforto térmico dos apartamentos com base em levantamento de 236 plantas de edificações residenciais a serem construídas e foram construídas no período de 2014 a 2022. Os autores, utilizando os critérios de conforto térmico adaptativo, verificaram que os apartamentos originais não conseguem atender o critério de pelo menos 80% das horas com ocupação. Os autores propõem algumas mudanças no projeto original, a saber: colocação de janela externa no banheiro, redução da área envidraçada, redução do fator solar das áreas envidraçadas e aumento da varanda. Estas modificações melhoram as condições de conforto térmico, porém, ainda não conseguiam atingir níveis adequados(pelo menos 80% das horas ocupadas em conforto). Dessa forma, os autores avaliaram o impacto no consumo de energia destas edificações por meio da avaliação do comportamento da demanda de carga térmica ao longo do ano. Assim, os autores verificam aumentos de consumo de energia entre 12 e 24% para os cenários climáticos futuros de 2080 para os apartamentos analisados.
Scarpa&Luz (2023) analisam o desempenho térmico e energético de apartamentos com área superior a 150 m2com varandas extensas e fechadas com painéis de vidro em São Paulo. O impacto de fachadas envidraçadas já foi extensivamente analisado com consequências bem conhecidas: altos índices de desconforto térmico e dependência de sistemas de climatização para garantia de conforto térmico que promove consumo de energia alto. Os autores avaliaram 229 plantas de edificações construídas ou em construção que atendiam os critérios de apartamentosde alto padrão e com área superior a 150 m2 em São Paulo. Com base neste levantamento, foi produzido um modelo de apartamento típico para ser simulado na ferramenta Energy Plus versão 23.1.0 (U.S. DOE, 2018) utilizando dados climáticos atuais e futuros (2030, 2050 e 2080) desenvolvidos por Alves et al (2021).Os autores verificam que o fechamento da fachada com vidro (prática comum no mercado) prejudica significativamente o conforto térmico por calor subindo a porcentagem de horas de desconforto em relação ao total de horas de ocupação de 7% (varanda aberta) para 67% (varanda fechada) no clima atual e que se eleva para 81% no cenário futuro de 2080. Os autores também simularam a condição de uso de sistemas de climatização e verificam que o consumo deste sistema praticamente dobra quando a fachada é fechada no cenário climático atual comparado com o consumo na condição com a varanda aberta. No caso dos cenários climáticos futuros, o consumo do sistema de climatização praticamente dobra o seu valor em relação ao cenário climático atual.
Guarda (2023) analisou as condições térmicas internas de um edifício multifamiliar nas cidades de Manaus, Cuiabá e Florianópolis.Considerando os cenáriosclimáticos atual efuturos (2030, 2050 e 2080) eidentificando situações de vulnerabilidade dos ocupantes por meio de indicadores de stress térmico, analisou a capacidade de estratégias passivas de projeto como medidas de adaptação. A autora avaliou que, sob os impactos das mudanças climáticas, a temperatura média anual aumenta 4,8°C nas cidades de Manaus, Cuiabá e Florianópolis, e a umidade relativa do ar reduz em 11% em Manaus, 7% em Cuiabá e 8,5% em Florianópolis até 2080. A combinação de estratégias passivas, como sombreamento e telhado verde, são positivos até 2050, porém, em 2080, a eficácia dessas estratégias é reduzida, não ultrapassando 10% de redução em Manaus, 20% em Cuiabá e 37% em Florianópolis, durante as exposições diurnas e noturnas. Dessa forma, o uso de sistemas de climatização se faz necessário para manter as condições de conforto térmico no interior das habitações. A autora verifica que, em Manaus e Cuiabá, ocorre um aumento significativo do consumo relativo à climatização em 2080, correspondendo a mais de 80% do consumo energético total da habitação. No caso de Florianópolis, esse consumo energético aumenta em 79% do consumo energético total.
Análise da qualidade do ar interior em residências
Para a avaliação do uso de sistema de climatização do ponto de vista da qualidade do ar interior, foram feitas simulações utilizando o modelo desenvolvido por Agostinho (2023) de uma residência unifamiliar na cidade de São Paulo,utilizando a ferramenta Energy Plus versão 9.0 (US DOE, 2018).Para este modelo, serão utilizadas as vazões de renovação de ar de 12 L/s (dormitórios) e 20 L/s (sala), sugeridas pela norma NBR 16555 (ABNT, 2018), porém, deve-se ressaltar que na norma ASHRAE 62.2 (ASHRAE,2022) sugere-se 18 L/s para residências com 02 dormitórios com área abaixo de 47 m2.
De acordo com a NBR 16401/2008 (ABNT,2008), deve-se enfatizar que a concentração de CO2 no recinto acima da concentração no ar exterior é considerada um indicadorválido do nível de poluição produzido pelas pessoas. Porém, não pode ser consideradoumindicador da qualidade do ar do recinto, pois inúmeros poluentes químicos estão presentes em uma residência, além dosproduzidos pelas pessoas, e não têm nenhuma relação com a concentração de CO2.Neste trabalho, a concentração de CO2 nos ambientes será avaliado apenas como referência do efeito da dispersão dos poluentes quando os ambientes estão expostos a diferentes níveis de vazão de renovação de ar.
Stoco (2022) avalia a concentração de CO2em ambientes externos em dois pontos na cidade de São Paulo: Pico do Jaraguá e campus da Universidade de São Paulo. Para estas localizações, Stoco (2002) verificou que a concentração média anual de CO2 é de 416,7±8,8 ppm (Pico do Jaraguá) e 430,9±23,3 ppm (Campus USP). Neste trabalho, será adotado o valor médio destas duas medições (423 ppm) como estimativa inicial, ressaltando que este valor podevariar significativamente na Região Metropolitana de São Paulo.
Para o cálculo da produção de CO2, foi adotado,para o volume de produção de dióxido de carbono, o valor de 0,00128 L/(s.pessoa) para os dormitórios (atividade dos ocupantes= 81 W) e0,00785 L/(s.pessoa) para a sala (atividade dos ocupantes= 108 W), valores calculados com base em metodologia apresentada na NBR 16401/2008 (ABNT,2008).
As simulações aqui realizadas adotaram os seguintes cenários:
- Cenário 1: residência com sistemas de climatização em todos os cômodos de longa permanência (dormitórios com 2 pessoas e sala com 04 pessoas (ABNT, 2021)) com ventilação apenas por frestas (vazão equivalente de 5 L/s (ABNT,2008)) e sem sistema de renovação de ar;
- Cenário 2: residência com sistemas de climatização em todos os cômodos de longa permanência (dormitórios com 2 pessoas e sala com 04 pessoas (ABNT, 2021)) com sistema de renovação de ar com vazões de 12 L/s (dormitórios) e 20 L/s (sala) (ABNT,2018);
A Figura 3 apresenta a distribuição da concentração de CO2 em ppm para um dos dormitórios e para a sala no Cenário 1 para um dia típico. Pode -se observar que, no caso do dormitório, os níveis de concentração de CO2 se mostram adequados (abaixo de 1000 ppm), o que não ocorre na sala (valores entre 896 ppme 4221 ppmcom uma média de 2136ppm). Este comportamento se dá em função da ocupação e atividade nos dormitórios ser bem menor que na sala e indicando que, no caso da sala, a renovação de 5 L/s não é suficiente para uma boa dispersão dos contaminantes.
Já a Figura 4 apresenta a distribuição da concentração de CO2 em ppm para um dos dormitórios e para a sala no Cenário 2 para um dia típico. Verifica-se que, para o dormitório, os níveis de concentração de CO2 reduzem ainda mais (entre 400 e 600 ppm) pois a vazão de renovação passa a ser muito maior. No caso da sala, houve também uma redução significativa da concentração de CO2 (valores entre 423 ppm e 1965ppm com uma média de 811 ppm) que demonstra que a instalação de renovação de ar promoverá uma diluição adequada dos poluentes.
Figura 3. Variação da concentração de CO2 (ppm) na sala e no dormitório (Cenário 1).
Figura 4. Variação da concentração de CO2 (ppm) na sala e no dormitório (Cenário 2)
Conclusões
Neste artigo foram apresentados resultados de pesquisa relacionados ao desempenho termo energético de habitações residenciais submetidas a condições climáticas atuais e futuras em que são considerados os efeitos do aquecimento global. Ficou demonstrado que as habitações no Brasil demandarão o uso de sistema de climatização para garantir o conforto térmico dos seus usuáriosde forma cada vez mais intensa no futuro próximo. Além disso, ratificou-se a importância da instalação de sistemas de renovação de ar por meio da análise de concentração de CO2 (apesar não pode ser considerado um indicador de qualidade do ar interior) pois foi demonstrado que maiores taxas de renovação de ar permitem uma maior diluição dos poluentes em residências. Dessa forma, deve-se investir em pesquisas mais focadas no ambiente residencial para esclarecer os níveis de poluentes e como sistemas de renovação de ar podem fornecer ambientes mais saudáveis para seus usuários, bem como no impacto que estas habitações promoverão na demanda energética no Brasil.
Referências
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