Vidas humanas importam e, quase sempre, as ferramentas para evitar tragédias estão à mão, basta conhecê-las para utilizá-las 

O que verdadeiramente mata em ocorrências de incêndio é, quase sempre, a fumaça. A legislação e normas, no Brasil, só começaram a ser discutidas após tragédias de grandes proporções. Em São Paulo, por exemplo, tivemos na década de 1970 duas grandes ocorrências que deram início à busca de soluções: edifícios Andraus e Joelma.

Recentemente, na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, tivemos a imensurável tragédia da boate Kiss, na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013, que custou 242 mortes e 680 feridos. O desrespeito às normas mínimas de segurança foi a causa.

Nunca é demais chamar atenção para o tema. E, nada melhor para mostrar a sua relevância do que entregar a advertência a pioneiros do mercado. Assim, chamamos a colaborar com a revista dois dos mais significativos profissionais da área: o engenheiro Duílio Terzi, que desde a década de 1980 estuda a questão e colabora com as autoridades da Cidade de São Paulo para melhor municia-las; e o engenheiro e Coronel do Corpo de Bombeiros de São Paulo, Carlos Cotta, um dos batalhadores para a criação e implantação da Norma da corporação paulista, exemplo para outras distribuídas pelo país.

O que deve ser observado ao se projetar sistemas de pressurização de escadas

Por Carlos Cotta Rodrigues

O primeiro grande problema está relacionado com o profissional que elabora o projeto de pressurização de escadas. O que mais tenho visto são profissionais, muitas vezes, especialistas em ar condicionado, mas que não conhecem absolutamente os conceitos atrelados à norma da ABNT NBR 14880 ou IT-13 do Corpo de Bombeiros de São Paulo (copiada por outros corpos de bombeiros).

A segunda grande preocupação é com a captação de ar do sistema. Tal captação do ar, que deve ser externo à edificação, deve possuir risco zero de captação de fumaça. Como a grande maioria dos ventiladores são posicionados nos pavimentos subsolo, não é incomum verificarmos a existência de venezianas de captação junto a sua rampa de acesso. Outro erro comum de muitos analistas dos corpos de bombeiros é o fato de considerarem que toda captação de ar externo, posicionado no pavimento subsolo, é sempre de risco. Se a captação for realizada de uma parede cega (parede externa da edificação, sem qualquer abertura), não há o que questionar, tal risco é zero. Logicamente que essa parede cega deve possuir resistência ao fogo de no mínimo 120 minutos.

O posicionamento dos ventiladores em ambientes compartimentados costuma ser outro erro. Como, normalmente, as casas de máquinas dos sistemas de pressurização de escadas ficam posicionadas nos pavimentos subsolo e ocupam uma área considerável, existem conflitos entre os espaços necessários para vagas de veículos e o espaço necessário para uma casa de máquinas do sistema de pressurização de escadas. Neste quesito, a falta de capacitação dos arquitetos torna-se fator preponderante.

Aliado a isto, os pés-direitos desses subsolos, por serem baixos e cheios de vigas e demais instalações, não facilitam em nada o posicionamento dos dutos de distribuição, que levam o ar pressurizado dos ventiladores ao duto vertical no interior da escada pressurizada.

Um dos erros mais comuns e catastróficos é o posicionamento do dumper de sobrepressão (dispositivo responsável pela limitação da pressão no interior da escada pressurizada) no interior do duto de pressurização de escadas. O dumper de sobrepressão é um dispositivo que deve controlar a pressão do interior da escada pressurizada e não controlar a pressão do interior do duto de pressurização desta escada. O dumper de sobrepressão deve ser instalado na parede da escada pressurizada em contato com o ambiente externo, evitando-se o efeito vento.

Muitos profissionais incompetentes apresentam com projeto de pressurização de escadas somente os valores de vazão estabelecidos pelas regras de cálculo da IT-13. Um sistema de pressurização de escadas não existe se não forem calculadas as vazões e a pressão do sistema. A falta de capacitação dos analistas dos corpos de bombeiros, os quais não são treinados e não conhecem a forma correta de cálculo, para avaliarem tais projetos ajudam a piorar esta situação. É a típica fotografia de um cego conduzindo outro.

Recentemente ofereci meu processo de cálculo a alguns corpos de bombeiros de maneira gratuita. Continuo aguardando a resposta deles. O processo de cálculo que utilizo está de acordo com os memoriais desenvolvidos pelo Engenheiro Raul Bolliger Júnior, grande especialista da Smacna.

Erros consideráveis ocorrem quando se desconsideram o denominado “Efeito do Sistema” nos ventiladores. Tal erro, certamente, impede o adequado e projetado desempenho.

Realizei uma avaliação no sistema de pressurização de escadas confeccionada por um profissional incompetente na cidade de Varginha, Minas Gerais. A alegação era de que o sistema não chegava a pressurizar a escada a menos de 15 metros do ventilador. No local, e avaliando as condições de montagem do sistema, realizei um cálculo rápido com meu sistema e constatei que 100% de toda a pressão gerada pelo ventilador era perdido logo na saída deste ventilador por erros de montagem dos dutos. Eram tantas as interferências que se tornava, realmente, impossível o sistema operar minimamente.

Um outro exemplo que me surpreendeu é o que ocorre em meu próprio condomínio. Detectei, por acaso, que havia perda da pressurização pelos quadros de elétrica, telefonia e hidrante. Realizei medições do gradiente de pressão e não havia pressão no interior da escada de segurança. Constatei que a velocidade de ar que passava pelos quadros de elétrica era de cerca de 10 m/s. Removendo a grelha de insuflamento pude observar que havia restos de obra, tapumes, capacete, escada, rolos de fios; tudo literalmente impedindo que o ar pudesse passar a partir do ventilador, saindo de maneira forçada, pelos quadros de elétrica e demais outros. Denunciando tal situação o Corpo de Bombeiros cassou o AVCB. Atualmente a construtora foi forçada a resolver o problema, mesmo 9 anos após a entrega das obras (é o denominado vício oculto). Atualmente denunciei todos os engenheiros e demais profissionais envolvidos junto ao CREA. Estou aguardando os demais procedimentos do Corpo de Bombeiros para adotar demais medidas.

Em resumo, nunca o sistema de pressurização de escadas funcionou ou teve a possibilidade de funcionar, sendo que sempre foram emitidas as Anotações de Responsabilidades. É um crime, simples assim.

Para não dizer que isto não ocorre em grandes edificações, no mês de junho deste ano fui procurado para realizar teste de desempenho de sistema de pressurização de escadas em uma faculdade na região da Vila Mariana. Antes de preparar uma oferta para a realização do trabalho solicitado, sempre faço uma visita técnica. Avaliando as escadas supostamente pressurizadas verifiquei que os erros eram tantos que seria impossível realizar medição de desempenho dos sistemas existentes. Existia comunicação entre a escada pressurizada com o sistema de ar condicionado, da mesma forma havia alteração no interior da escada que interrompia o funcionamento do dumper de sobrepressão. Não vou me aprofundar nas outras questões, tais como sistema de detecção e alarme de incêndio que não atendiam a ABNT NBR 17240, a qual trata do sistema de detecção de incêndio.

Legislação de segurança

Normalmente, todos os corpos de bombeiros possuem legislações de segurança contra incêndio que, de maneira geral, são cópias da legislação do Corpo de Bombeiros de São Paulo. Esta legislação do Corpo de Bombeiros de São Paulo, em sua esmagadora maioria, não existiria se não houvessem as Normas da ABNT. Assim sendo, as normas elaboradas na ABNT são as bases para as exigências atuais e os carros chefe hoje em vigor.

Vale destacar a atual Lei assinada em março deste ano, pelo presidente da República, denominada Lei Kiss (Lei nº 13425), que apresenta em seu texto algumas das importantes características para diminuir o risco da propagação de um incêndio, bem como a diminuição da possibilidade da emissão de fumaça tóxica. Como é conhecido, 80% das mortes em qualquer incêndio é causada pela fumaça. Assim sendo, o controle dos materiais de acabamento e revestimento são um dos principais atores na segurança contra incêndio. Atualmente, as organizações de bombeiros estão aumentando os rigores com relação a utilização de materiais de acabamento e revestimento incombustíveis ou com classificação que garanta baixa velocidade de propagação e baixa emissão de fumaça. A utilização de materiais sem tais classificações foi um dos motivos da evolução do incêndio na Boate Kiss, resultando na emissão de fumaça altamente tóxica e ácida, os quais vitimaram as mais de 240 pessoas.

O segundo ator muito importante é o sistema de detecção e alarme de incêndio, responsável em alertar a população usuária em tempo hábil para seu abandono seguro na edificação ou área de risco.

Extração de fumaça em escadas

O princípio de funcionamento do sistema de pressurização de escadas tem como objetivo o de não permitir a entrada de fumaça na escada de segurança. Para entender melhor são dois conceitos físicos importantes:

  • O primeiro conceito é o gradiente de pressão e ocorre quando todas as portas corta-fogo de acesso a escada de segurança estão fechadas, suas frestas garantem um gradiente de pressão entre o interior da escada pressurizada e o seu exterior (interior da edificação). Como a pressão gerada pelo incêndio, no interior da edificação, é menor que a pressão gerada pela pressurização da escada, o fluxo de ar a partir da escada pressurizada, passando pelas frestas das portas corta-fogo, será mantido.
  • O segundo conceito é com relação ao fluxo de ar para as portas corta-fogo abertas. As portas corta-fogo são abertas quando da passagem da população usuária. Abrindo-se qualquer porta corta-fogo, alteramos o conceito do gradiente de pressão para o conceito de fluxo de ar. Nos cálculos elaborados deve-se verificar o fluxo mínimo de ar (velocidade de ar) passando pelas portas corta-fogo calculadas como abertas. Este fluxo de ar, com velocidade pela abertura da porta corta-fogo, deve ser de 1,0 m/s, no mínimo.

Como são calculadas duas portas corta-fogo como abertas, o sistema de detecção e alarme de incêndio é um dos principais dispositivos de proteção à vida, que deve garantir o abandono da população de forma faseada, para não comprometer os conceitos retro citados do sistema de pressurização de escadas.

Assim sendo, não é adequado qualquer sistema de extração de fumaça no interior das escadas de segurança. Na Europa existe tal sistema, mas são utilizados, normalmente, pelos corpos de bombeiros quando adentram na edificação, como forma de melhorar a visualização. O conceito de extração de fumaça é utilizado para algumas edificações como adaptações.

Não pode ser aceitável a entrada de fumaça no interior da escada de segurança, isto deve ser evitado a todo custo. Por isso falamos, para escadas de segurança, em pressurização de escadas, projetando um sistema que evite que a fumaça adentre no seu interior.

Da mesma forma, o sistema de controle de fumaça é projetado para captar esta fumaça do incêndio, removendo-a das áreas de risco para a população usuária, principalmente das rotas de fuga, e levando para o exterior da edificação.

Recentemente estive no Shopping Raposo e verifiquei, em uma loja âncora, que o ventilador e sua montagem não atendiam aos requisitos mínimos estabelecidos na IT-15 do Corpo de Bombeiros, ou seja, resistência ao fogo. Da mesma forma seus dutos de captação de fumaça eram próprios somente para renovação de ar (corrugados com envoltório de alumínio). Esta é uma situação, infelizmente, corriqueira.

Retardo da ação do fogo e fumaça nas rotas de fugas

Para retardar a ação da fumaça e do incêndio nas rotas de fuga, alguns sistemas e considerações devem existir. Primeiramente nas rotas de fuga não pode existir material de acabamento e revestimento combustível, todos estes elementos devem garantir a não propagação do incêndio e da fumaça. As rotas de fuga são ambientes que devem possuir o conceito de compartimentação em relação às áreas de risco da edificação. Esta resistência varia de acordo com o risco da edificação, podendo variar de 30 minutos a 120 minutos.

Dumpers corta-fogo são elementos que garantem, primordialmente, a compartimentação. A compartimentação é um conceito mais complexo em termos de proteção contra incêndio. Para se garantir a compartimentação 3 (três) são os conceitos: estabilidade, integridade e isolamento térmico. Os dumpers corta-fogo deverão garantir estes conceitos. Normalmente são posicionados em dutos que atravessam áreas de risco diferentes. Quando acionados fecham-se, garantindo que não passe por ele o calor. Em alguns casos, não necessários dumpers corta-fumaça.

Os sistemas de pressurização de escadas e de controle de fumaça são os principais atores na proteção à vida. O sistema de controle de fumaça além de garantir a sobrevivência da população usuária ajuda nas ações dos corpos de bombeiros, uma vez que garante a visibilidade do incêndio e, da mesma forma, garante a diminuição da temperatura do incêndio, controlando-o.

Combatentes do Corpo de Bombeiros de São Paulo somente não morreram no incêndio por conta da inalação da fumaça, por ser o ano da copa do mundo de futebol. A FIFA exigiu, após o incêndio da Boate Kiss, que todos os hospitais de referência tivessem o antídoto para o ácido cianídrico, um dos elementos químicos produzidos pelo incêndio. Todos os corpos de bombeiros devem estudar e investir na aplicação de sistemas de controle de fumaça para as edificações, principalmente para locais de reunião de grande público, bem como em locais onde a população usuária não possui o abandono como item possível de ser realizado, como em hospitais, por exemplo. Este tipo de risco não permite o abandono da população usuária e, desta forma, torna-se imprescindível a instalação de sistema de controle de fumaça. Imaginem um centro cirúrgico tendo que realizar a remoção de um paciente que está sofrendo transplante de coração. É simplesmente impossível. A edificação deverá possuir características que impeçam a possibilidade de um incêndio mas, caso esse ocorra, deverá garantir que a população usuária não precise sair de seus ambientes. Tais edificações devem ser autossustentáveis em termos de proteção contra incêndio. Sistemas de controle de fumaça, detecção e alarme de incêndio, water-mist, gases limpos e compartimentações são imprescindíveis para se garantir a vida.

Carlos Cotta Rodrigues, engenheiro e coronel, coordenador da CE de Sistemas de controle do movimento da fumaça de incêndio

Veja também:

Fumaça sempre foi a grande vilã dos incêndios em geral

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